icone facebookicone twittericone instagram

diario

 

SELO DE QUALIDADE

 Sexo pago e seguro

Na região de Lages, onde 11 mil pessoas se prostituem, a atividade é levada tão a sério que a prefeitura da cidade criou o Previna. O programa é voltado às profissionais do sexo e busca a promoção da saúde de cada uma delas, a fim de que possam trabalhar e prestar seus serviços com segurançaElas admitem que sexo é um negócio, uma forma de lucrar. Não fazem amor, alugam o corpo. Na grande maioria das vezes, o prazer limita-se a receber dinheiro dos homens com quem transam. As profissionais do sexo são mulheres que, quase toda noite, deixam suas casas, parceiros e filhos e saem para a balada à espera de solteiros, carentes e infiéis que pagam por relações que são de consumo, e não amorosas.

 Não existe paixão. Existem, sim, homens na condição de clientes que contratam mulheres para satisfazê-los sexualmente.

 Nas casas noturnas, elas têm horários e regras a cumprir.

 – A vida aqui não é uma zona – diz uma jovem que trabalha em uma das maiores boates de Lages, na Serra Catarinense.

 De acordo com a Associação Catarinense de Apoio Social e Educacional à Família (Acasef), dos 170 mil moradores da região de Lages, 11 mil se prostituem, o que representa 7% dos habitantes do oitavo município mais populoso do Estado.

 A prostituição é levada tão a sério por estas pessoas que, como em qualquer outro trabalho insalubre, elas se cuidam e se preocupam com a saúde. Tanto que recebem até carteirinha e certificado de qualidade.

 Fornecidos pela prefeitura de Lages, os polêmicos documentos buscam incentivar as profissionais do sexo a se prevenirem e atestam às casas noturnas o status de qualidade e ambiente livre de doenças, já que cada local recebe o certificado para ficar visível ao público.

 Há pouco mais de um ano, foi efetivado pela Secretaria Municipal de Saúde o Programa Previna, voltado às profissionais do sexo, e que busca a promoção da saúde de cada uma delas, a fim de que possam trabalhar e prestar seus serviços com segurança a elas e aos seus clientes.

 O programa consiste em visitar as casas noturnas da cidade, das mais modestas às mais sofisticadas, oferecendo orientações sobre doenças sexualmente transmissíveis, gravidez indesejada e violência contra a mulher, realizando testes de HIV e exames preventivos de colo do útero e de mama e distribuindo preservativos e métodos contraceptivos.

 Os testes e exames são realizados a cada seis meses em todas as casas cadastradas, mas as profissionais têm à disposição gratuitamente os atendimentos de uma equipe que conta com ginecologistas, enfermeiras, psicólogos e assistentes sociais.

 Todas as segundas-feiras, a partir das 14h, um ginecologista dedica-se exclusivamente a estes pacientes. Assim, com uma vida sexual bastante ativa, as profissionais podem ter acesso aos especialistas semanalmente sem a necessidade de agendar consulta.

 O resultado de todo este processo é que desde o início do Previna não foi confirmado nenhum caso de HIV entre as mulheres cadastradas, a não ser alterações nos exames preventivos, como nódulos e pequenas feridas que, assim que detectadas, são cauterizadas.

 – As próprias profissionais e os donos das casas noturnas nos procuram, pois sabem da importância do sexo seguro, tanto para a saúde quanto para o negócio. Além de ser um direito dessas pessoas, a nossa preocupação com elas é uma forma de inserção social, já que elas estão mais vulneráveis – diz a coordenadora do Programa Saúde da Mulher e responsável pelo Previna, Francine Matos.

 

 120 atendimentos por mês

Por meio do Previna, as autoridades de saúde de Lages têm um número muito próximo da realidade da prostituição. Quando o programa foi efetivado, há pouco mais de um ano, a meta era atender 15 profissionais por mês. Hoje, o número de atendimentos passa de 120.

 Mas, ao mesmo tempo em que cresce a preocupação com a saúde, cresce, também, a prostituição na cidade. Por mês, são cadastradas, em média, cinco novas profissionais e uma nova casa noturna. Só em julho, 41 mulheres se cadastraram.

 – Chegamos a encontrar 22 novas profissionais na mesma noite em uma só boate – diz a coordenadora do Programa Saúde da Mulher, Francine Matos.

 Quem trabalha nas ruas não recebe o mesmo acompanhamento por não ter um local de referência, mas é orientado a procurar os benefícios do Previna e, então, passar a ser atendido.

 Busca por sonho e aventuraDurante as visitas às casas noturnas, os integrantes do Programa Previna se deparam com mulheres com diferentes histórias de vida. Algumas entraram para a prostituição pela aventura, muitas vezes influenciadas por amigas.

 Outras saíram de suas cidades porque não suportavam mais o tédio e a falta de oportunidades, mas sem encontrar algo melhor, acabaram se prostituindo. Algumas tiveram problemas pessoais, como violência sexual na infância e adolescência, e se revoltaram a ponto de alugar o próprio corpo. Mas a maioria está mesmo é em busca da realização de sonhos.

 – Temos mulheres cadastradas dos 18 aos 54 anos. Nunca flagramos menores. A maioria, talvez 80%, relata que quer sair da prostituição. Elas desejam comprar ou construir suas casas e fazer faculdade – diz a coordenadora do Programa Saúde da Mulher, Francine Matos.

 Outros projetos em ação

Segundo Iraci Batista da Silva, gerente da Diretoria de Vigilância das DSTs/HIV/Aids da Secretaria de Estado da Saúde, os profissionais do sexo de Lages também são beneficiados com o projeto Anoitecer, da Associação Catarinense de Apoio Social e Educacional à Família (Acasef). A iniciativa envolve os municípios de São Joaquim e Correia Pinto.

 Entre as atividades, estão oficinas com dinâmicas que abordam temas de orientação sobre sexo seguro e prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). A Acesef faz distribuição de fôlderes e boletins informativos e oferece atendimento com psicólogo e assistente social para os cerca de 700 participantes.

 O projeto Prevenção ao HIV/Aids e outras DSTs com profissionais do sexo feminino é feito pelo Grupo de Apoio e Prevenção a Aids (Gapa) de Chapecó, no Meio-Oeste. São cerca de 300 pessoas que participam de ações educativas sobre prevenção de DSTs e uso correto de preservativo. O mesmo é feito na Capital.

 Na região metropolitana de Florianópolis, a Associação em Defesa das Mulheres Profissionais do Sexo Estrela Guia é responsável pelo projeto Em Busca da Auto Estima e Prevenção, que atende cerca de mil pessoas na Capital e em São José.

 – Estas profissionais estão bem mais conscientes quanto à importância de usar preservativos e estão se cuidando, fazendo os exames preventivos – destaca a presidente da Estrela Guia, Ana Paula Litwinski.

 Garotos de programa se preocupam menos

 O publicitário e mestre em História Rafael Araújo Saldanha, que durante dois anos estudou a prostituição no sexo masculino, afirma que a preocupação com a saúde é deixada de lado por alguns, enquanto que, para outros, ela é fator de negociação. São cobrados valores diferenciados quando a relação é feita com ou sem preservativo.

 – Entre o vender e o comprar de um corpo se instituem muitas relações de poder. É o reforço da masculinidade de quem tem o poder através do dinheiro – diz Saldanha, autor do livro Prostituição em Áreas Urbanas: Histórias do Tempo Presente.

 Campanhas começaram em 1960

A preocupação com a saúde dos profissionais do sexo no Estado não é de agora. Segundo a historiadora Marlene de Fáveri, há registro de campanhas voltadas às prostitutas desde a década de 1960, em Itajaí:

 – Depois de serem examinadas, elas recebiam uma carteirinha que, de acordo com a cor, informava se estavam bem ou não de saúde

 Esse cuidado também foi observado em Paris, no século 19, com o desenvolvimento de ações para evitar a disseminação de doenças. Com o surgimento do vírus HIV, da Aids, na década de 1980, essas campanhas foram intensificadas.

 – Além dos homossexuais, as prostitutas foram colocadas nos grupos de risco. A Aids estava acometendo as famílias e se tornou questão de saúde pública. Então, o governo começou a realizar campanhas para cuidar da saúde dos clientes homens, já que contraíam o vírus e depois transmitiam em casa para as mulheres – conta a historiadora.

 Com Janine Gomes da Silva e Joana Maria Pedro, Marlene organizou o livro Prostituição em Áreas Urbanas - Histórias do Tempo Presente, da Editora Udesc. A obra reúne estudos que apresentam diferentes olhares sobre a prostituição no Estado.